CORREIO DA MANHÃ (Lisboa)
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Os rituais africanos podem ser a explicação para o misterioso desaparecimento das crianças de Moçambique, um facto atribuído a um alegado tráfico de órgãos humanos. “Esse problema parece uma mistificação que pode ter por base os rituais africanos. | |
Não acredito que haja uma rede de tráfico de órgãos porque Moçambique não faz transplantes nem tem condições para tal e é impensável fazer isso às escondidas noutro país”, declara ao CM o reputado cirurgião João Rodrigues Pena.
Para reforçar a sua tese, este antigo responsável pelos transplantes no Hospital Curry Cabral e Hospital da Cruz Vermelha lembra o caso de uma criança assassinada na Amadora, há alguns anos, “para o assassino comer os seus órgãos porque acreditava ser este um método terapêutico para curar os seus males e que lhe dava força”. Rodrigues Pena considera o alegado tráfico de órgãos uma “realidade inverosímil” apenas concebida num cenário de ficção. Apesar da grande falta de órgãos a nível mundial e de saber que há gente disposta a pagar muito dinheiro por um rim, fígado ou coração, o cirurgião refuta a tese do alegado tráfico porque “é ilícito e internacionalmente não é aceite. Não acredito que haja hospitais nem especialistas envolvidos nisso”, disse. “Sei do que falo. Eu e a minha equipa fomos responsáveis por cerca de 2000 transplantes feitos em Portugal e a colheita de órgãos não pode ser feita por um carniceiro. É um acto cirúrgico minucioso, que requer uma equipa altamente especializada, numerosa e equipamento tecnológico muito sofisticado”, justificou Rodrigues Pena. Questionado sobre os receptores, responde que o tamanho dos órgãos é importante. “Os órgãos das crianças são pequenos e só devem ser transplantados noutras crianças, não em adultos.” A complexidade da transplantação passa pela compatibilidade, condição essencial para um receptor que esteja à espera de um rim ou coração. O fígado não requer a exigência da tipagem do grupo sanguíneo. Para a transplantação ser bem sucedida é necessário que o órgão seja conservado em condições muito específicas e não pode ser submetido a temperaturas abaixo de 0 graus. Depois de removido e criopreservado (conservado no frio), o órgão tem um tempo máximo como limite de segurança para ser transplantado. O coração e o fígado não podem ultrapassar as 12 horas, o pulmão conserva-se pouco tempo, o rim preserva-se até às 24 horas e a córnea pode ser transplantada ao fim de 15 dias. A pele pode ser congelada, já o pâncreas e o intestino são órgãos muito delicados. Rodrigues Pena sabe que na Índia os “colegas” fazem transplantes quando há dadores dispostos a vender um rim para criar um negócio ou casar. “Os párias vendem um rim a troco de dinheiro mas os resultados são maus e muitas vezes pagam com a própria vida”, conclui. VIVER SEMPRE COM MEDO Desde que as irmãs Elilda e Juliana, freiras da Congregação das Servas de Maria, denunciaram o rapto de crianças e o alegado tráfico de órgãos em Nampula, vive-se um ambiente de medo não só naquela província moçambicana, mas também nos arredores. Os pais tremem de cada vez que deixam os seus filhos na escola. Os filhos sentem-se inseguros e desconfiam da própria sombra quando não estão acompanhados. As crianças de rua, párias que não podem contar com a protecção de ninguém, vão-se escondendo como podem. As autoridades mantêm um incomodativo silêncio. As pressões internacionais sobem de tom. Há muito que aquelas missionárias denunciam o desaparecimento de pessoas, sobretudo mulheres e crianças, e a descoberta de cadáveres com alguns órgãos removidos. Um dos casos mais divulgados é o de Sarima Iburamo, uma rapariga de 12 anos, que desapareceu em Outubro de 2002 quando ia vender fruta no centro de Nampula. No dia seguinte, apareceu o seu corpo sem o coração, pulmões e rins. A Polícia limitou-se a registar o caso. Perante esta indiferença, as freiras fizeram pesquisas por conta própria e chegaram a filmar locais onde terão ocorrido alguns destes assassínios. As investigações só contaram com a intervenção do procurador-geral de Moçambique, Joaquim Madeira, depois de as freiras o terem contactado para lhe darem conta das suas suspeitas sobre o possível envolvimento dos seus vizinhos estrangeiros, o casal Gary O'Connor e Tania, que exploram uma quinta cedida pelo governador de Nampula, Abdul Razak, numa rede de tráfico de órgãos. Joaquim Madeira enviou uma comissão de investigação a Nampula, que não encontrou indícios de tráfico de órgãos. “Está tudo minado”, desabafa a irmã Elilda, ao CM, sugerindo que há pressões de figuras gradas para desabafar o caso. Contactada pelo nosso jornal, a procuradora moçambicana Isabel Rupia justifica o silêncio das autoridades afirmando que as investigações estão em curso. A esperança da irmã Elilda, que se mantém firme nas denúncias apesar das ameaças e do assassínio da freira luterana Doraci Edinger, é que organizações internacionais actuem. A Amnistia Internacional prometeu enviar uma equipa. Portugal e Brasil estão entre os países que se disponibilizaram para ajudar nas investigações, que, segundo as irmãs, poderão encontrar ramificações em outros países, nomeadamente na Guiné-Bissau, onde recentemente foram denunciados casos de raptos. BRASILEIROS ALICIADOS A DAR ÓRGÃOS No Brasil, o tráfico de órgãos, sempre suspeitado mas raramente provado, provocou grande indignação em Dezembro passado, quando foi descoberta no estado de Pernambuco uma rede internacional que comprava órgãos de brasileiros pobres e os transplantava na África do Sul em cidadãos israelitas. A quadrilha, que continua a ser investigada, fez pelo menos trinta transplantes de rim e preparava-se para fazer também transplantes de fígado e coração. Segundo depoimentos de pessoas aliciadas pela quadrilha, e cujos nomes foram mantidos em segredo devido a ameaças de morte, a rede de traficantes percorria bairros pobres da periferia de Recife, capital de Pernambuco, e aliciava desempregados de boa estrutura física a ir trabalhar na África do Sul, oferecendo-lhes até dez mil dólares mensais e todas as despesas pagas. Os que aceitavam eram levados para a cidade sul-africana de Durban, e só aí eram informados que o real objectivo era comprar-lhes um dos órgãos. Um desempregado brasileiro de 31 anos, recrutado na região de Jaboatão dos Guararapes e que aceitou viajar a trabalho para a África do Sul no início de Novembro, contou que foi levado ao Hospital St. Augustin, alegadamente para ver se a saúde estava em ordem e, depois de exaustivos exames, fizeram-lhe a proposta de vender um dos rins por 10 mil dólares. Assustado, não aceitou e foi recambiado para o Brasil, com a ameaça de que seria morto se contasse a sua história a alguém. O capitão na reserva da Polícia Militar de Pernambuco Ivan Bonifácio da Silva e o capitão reformado do Exército de Israel Gedalia Talber são dois dos 11 suspeitos já presos no Brasil por envolvimento nesta rede. Segundo eles, a compra dos órgãos humanos em Pernambuco e as cirurgias na África do Sul eram custeadas pela Segurança Social de Israel. É que motivos religiosos impedem esse tipo de cirurgia em Israel, mas o Estado custeia os cidadãos israelitas que queiram fazer transplantes no estrangeiro. O NEGÓCIO MACABRO VISTO POR HOLLYWOOD A questão do tráfico de órgãos não escapa, obviamente, à indústria cinematográfica. Filmes como “Coma” e “Estranhos de Passagem” são apenas dois de uma imensidade de obras em que o negócio é abordado de forma mais ou menos frontal. Uma das primeiras obras a denunciar claramente o tráfico de órgãos é “Coma”, dirigido no distante ano de 1978 por Michael Crichton. Baseado na obra homónima de Robin Cook (que assina o argumento de parceria com o realizador), o filme tem como protagonistas Michael Douglas e Geneviève Bujold. A história desenrola-se numa clínica privada onde alguns pacientes morrem estranhamente na sequência de operações aparentemente simples. Douglas acabará por descobrir que a clínica não passa de uma fachada para um chorudo negócio de fornecedora de órgãos. Impressionante é a cena em que Douglas descobre o armazém recheado de corpos em suspensão. Não menos ‘chocante’ é o universo descrito em “Estranhos Prazeres” (”Dirty Pretty Things” no original), realizado em 2002 por Stephens Frears. Desta feita, a história roda em torno de um emigrante ilegal em Londres (Chiwetel Ejiofor), a quem um dia cai literalmente um coração humano nas mãos, quando tentava abrir um armário. A partir de então, o emigrante vê a sua situação (e a da companheira) em risco, embarcando numa espiral de acontecimentos que o levam a contactar de perto com o macabro mercado negro do tráfico de órgãos.
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