18 marzo, 2004

Nampula Enfia-se no Mato com Medo dos "Branco"


PUBLICO
Por ANA CRISTINA PEREIRA em Nampula
Quinta-feira, 18 de Março de 2004

Uma tigela de amendoins, outra de água com terra pousada no fundo, duas crianças pequenas. Não há mais nada para levar à boca. Já ontem foi assim. "Sorte um" e "Sorte dois", como lhes chama o pai, moram na África que dói, a dos meninos barrigudos e indiferentes às moscas.

Mário foi raptado e espancado quando andava a apanhar lenha.
Conseguiu escapar à corda, ficou prisioneiro do medo. Há cinco meses que anda escondido, saudoso dos pequenos. Paz só "quando o branco for matar irmãos dele para terra dele".

Trinta anos depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, o medo dos brancos regressa em força. No centro da cidade de Nampula, os olhos fixam-se nos movimentos de qualquer pele clara. "Eles vem roubar a gente, porque a nossa pele é muito dura!", apregoa uma menina de 12 anos, junto à catedral. Nas zonas rurais, como Mamoa e Manicopo, mulheres e crianças enfiam-se no mato mal um branco se aproxima.
A vida nunca foi fácil para os nativos do norte de Moçambique. Mas tudo se agravou nos

últimos meses, recheados de relatos sobre pessoas que desaparecem e cadáveres que aparecem mutilados. As denúncias - feitas pelas Servas de Maria com base em histórias como a de Mário - vão desembocar num fazendeiro vindo da vizinha África do Sul: Gerry O'Conner, um branco que jura inocência, com quem as missionárias dividem parte de uma estrada. E, de repente, é como se todos os brancos do mundo fossem suspeitos.

Esta é a história de Mário, um dos protagonistas dos crimes que estão a gerar a psicose. Convencido de que falar num país cravado pela corrupção é um risco, balança como uma criança entre o medo de ser atacado por quem acusa e o medo de ver os filhos morrerem de fome.

Mário só tem 22 anos, mas ninguém o trata por jovem num país onde a esperança média de vida pouco ultrapassa os 40 anos. Já é um homem de família. "Era órfão, arranjei esposa cedo para me socorrer. A minha mulher está sozinha, os meus filho a sofrer e por isso me trabalha tanto a cabeça."

Há cinco meses que não dorme em casa. Há cinco meses que só vê a mulher e os filhos quando vai acompanhar procuradores ou jornalistas que andam a investigar os estranhos desaparecimentos dos nativos. Há cinco meses que não ajuda a angariar alimentos para os seus meninos. "Tou cansado e o pior é que não vejo resultado", lamenta-se, uma e outra vez, a caminho de palhota que herdou dos pais.

Da estrada que liga a cidade ao aeroporto parte uma via de terra batida que obriga a
minuciosas manobras. A residência de Mário fica nessa direcção, entre coqueiros, bananeiras e plantações de amendoins. A mesma direcção da quinta de Gerry. "Bateram-me, levaram-se até uma das casa do branco", aponta. Tiraram-lhe a roupa, penduraram-no de cabeça para baixo com uma corda e ele gritou e gritou e esperneou e foi salvo por três senhores. Ou quase. "O estupor continua a me persegui."

Depois do macabro episódio, Mário conseguiu chegar à sua palhota com duas divisões que mais parecem um corredor despojado. Sem roupa, com os vergões bem marcados na pele nua. Foi pedir ajuda ao convento das Servas de Maria - pronto socorro da população em caso de dores de alma ou de "doença mesmo". A quem mais?
O relato sai-lhe cortado, mas firme. "Quando ia a sair, encontrei esse guarda alegado funcionário do sul-africano] que me capturou com cinco polícias." Foi como se lhe tivessem tirado o chão. Ficou refugiado três meses "nas irmã", a ver se o perigo "sumia". Ao regressar a palhota, tornou a sentir-se ameaçado pela presença dos guardas, voltou a esconder-se - desta feita num bairro de argila e colmo da periferia da cidade. "Ele quer me matar."

No caminho picado que conduz à família de Mário, há diversas sepulturas clandestinas e inúmeros vivos amedrontados. Antes de o PÚBLICO visitar "Sorte Um" e "Sorte Dois" - os filhos do camponês - é preciso pedir autorização ao chefe da aldeia, Papá Cucola. O velho Papá Cucola, que quase só fala emakhua, não só autoriza como participa no périplo que trará vozes que confirmarão o relato de Mário e acrescentarão outros. "Para dar confiança."

Mulheres e crianças fogem ao ver os "branco" e Cucola ri-se. "Não se preocupem! São brancos, mas não são aqueles!", informa Mário. A cena repete-se a cada confronto e termina, sempre, com gargalhadas de alívio. "Se não tivesse vindo com preto, não falava com ninguém", rise Mário.

Todos apontam para a África do Sul O missionário comboniano Arlindo Pinto diz que o medo nunca abandonou a província de Nampula. Depois da guerra colonial veio a guerra civil e a conquista da paz também "ensinou que é mais perigoso falar". A menos que se esteja em boa companhia, o silêncio é uma certeza.

Nas casas de cana ou nas bermas, quem se atreve a falar aponta o dedo a uma casa. Cucola bem queria deixar de ter o sul-africano por vizinho. Ainda na terça-feira foi admitir isso mesmo à Comissão Parlamentar que está em Nampula desde esse dia. O fazendeiro criou um aviário em troca da concessão de uma área de 300 hectares. O terreno, cedido pelo Município de Nampula, estava na família de Cucola há muitos anos. Mas esta, diz, é outra história. Uma história que não faz desaparecer crianças, nem aparecer cadáveres.

As crenças ancestrais nunca abandonaram Moçambique. O conflito sangrento que matou o pai de Mário é prova disso mesmo. Os guerreiros da Renamo usavam curandeiros para preparar o corpo antes de cada batalha. As ervas deveriam agir como uma espécie de colete mágico à prova de bala. Porém, diz a irmã Juliana, há 30 anos em Moçambique, o uso de órgãos humanos é bastante raro: "Só em cerimónias muito especiais, como a iniciação de um feiticeiro." E, nesses casos, esclarece também o sogro de Mário, usam-se "membros da família". "Isto [as acusações recentes de tráfico de órgãos] não é coisa de curandeiro. São assassinos mesmo."

A África do Sul viveu, nos anos 80 e 90, uma autêntica caça às bruxas. Mais de 400 pessoas terão sido assassinadas por populares em fúria. Há toda uma tradição desviante de usar órgãos humanos - genitais, córneas, corações - para melhorar a saúde, a fertilidade ou a prosperidade. E, segundo um relatório da Organs Watch, essas práticas renasceram desde a transição democrática. E é para lá, para a África do Sul, que os aldeões, que não conhecem os relatórios internacionais, apontam. Um a um. Mário, esse, já só quer voltar a casa. Ir à lenha. Ir à "machamba". "Os meninos só têm amendoins para comer."

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