19 marzo, 2004

Meninos de Rua Já Pagam Protecção Aos Guardas

PÚBLICO

Meninos de Rua Já Pagam Protecção Aos Guardas
Por DOS NOSSOS ENVIADOS ANA CRISTINA PEREIRA (TEXTO) E FERNANDO VELUDO (FOTOS), em Nampula

Barriga para baixo, perna esquerda dobrada sobre o degrau superior. Jacinto Pedro dorme na escadaria da catedral de Nampula. Ao seu lado, outros rapazes embalam o sono. Para cada um, um degrau esbranquiçado. Nas ruas adjacentes, miúdos fardados caminham, passo largo, para as aulas que Jacinto Pedro nunca teve. Para a catedral nem olham. Pelo menos agora. Alguns virão mais tarde, para participar na oração que, desde segunda-feira, se faz por conta dos misteriosos desaparecimentos.

Há "os meninos da Catedral", os da Rotunda, os do Mercado do Bispo e até já houve os da Ferrovia, mas, há uns meses, uma disposição dos Caminhos de Ferro escorraçou-os. Chegam de Nacala, de Lichinga, de Monapo, de Cabo Delgado, da cidade de Nampula e dos seus arredores. Habituados ao chão, acostumam-se ao fedor da ausência de banho. Alguns são muito pequenos, outros são já grandes, como Jacinto Pedro.

As notícias sobre tráfico de pessoas e de órgãos geram apreensão acrescida entre quem tem de dormir ao relento. Jacinto Pedro e os outros rapazes da Catedral deixaram-se de perder noites, que é como quem diz, deixaram de entrar em carros de estranhos mal o sol se põe. "Quando se dorme é difícil acontecer coisa má." Os grandes agarram-se a esta crença, mas os mais pequeninos quase desapareceram do átrio da Sé.

Entre os meninos da Catedral que operam junto ao Mercado Central, na Avenida Paulo Samuel Kankhomba, ouve-se falar no rapto recente de quatro companheiros. Talvez os mesmos quatro que estão à guarda das Servas de Maria: Jó, Pina, Selemane e Ernesto, com idades compreendidas entre os dez e os onze anos. Talvez outros órfãos da guerra e da falta de cuidados médicos, miúdos com percursos semelhantes ao de Jacinto Pedro.

No princípio, o pai dizia-lhe que a guerra era "coisa vinda de fora". Coisa de "branco da África do Sul que não queria preto no poder". Depois, a guerra, que ceifou a vida a cerca de um milhão de moçambicanos, matou-lhe o pai. A mãe, essa, morreu de tuberculose, mas o nome da doença pouco lhe importa.

Moçambique é muito vulnerável a desastres naturais combinados com pobreza extrema. "O preto morre de fome, morre de malária, morre de cólera, morre com sida." Cada vez mais com sida. Uma doença que dobra a vulnerabilidade das meninas de rua, num país onde ainda há quem acredite que ter relações sexuais com uma virgem mata o vírus.

Custa-lhe desfiar lembranças. A mãe saía todos os dias de enxada à cabeça para a "machamba", mas quase não tinha terra para "machambar". Com fome e sem medicamentos, foi devorada pela doença e Jacinto Pedro ficou a olhar para trás, sem "cem contos para pagar o aluguer". Cem contos são menos de quatro euros, mas quatro euros é uma fortuna para quem só pode sonhar com fartura quando está embalado pela fantasia do sono. Foi atirado para a rua, como milhares de outros órfãos.

A mobilidade dos meninos de rua é grande. Alguns querem apenas angariar meios para um bilhete de comboio - há parentes à distância de dois euros. Marco, amigo de Jacinto Pedro, passa os dias no Mercado Central, a oferecer-se para carregar e descarregar mercadorias, para isso mesmo. Se partem dali para casa de família ou se entram em rotas de tráfico - para prostituição, escravatura ou extracção de órgãos - não se sabe. A maior parte nem tem cédula. E, como diz Elilda Santos, missionária que tem vindo a denunciar o alegado desaparecimento de pessoas e o tráfico de órgãos, "não há quem ponha anúncio na rádio" por causa deles, como acontece com quem tem família.

Os meninos guardam-se uns aos outros. Só. E a Sé, diz Jó, "cheira a morto". Os quatro miúdos que estão com as Servas de Maria saíram de lá quando um dos seus amigos sucumbiu não se sabe às mãos de quem. Mudaram-se para a Praça da Liberdade, conhecida por Rotunda do Hospital.

"Na rotunda, é preciso pagar dez contos [cerca de 40 cêntimos] para dormir ao pé do guarda", conta Jó. Como muitas vezes têm de remexer o lixo para enganar o estômago, tal quantia soava-lhes, com frequência, a impossível. Tantas vezes, tantas, acabavam por dormir nos jardins da avenida. A pensar "nos espíritos dos falecidos, nas 'sofrências' deles". E nas suas próprias "sofrências", claro.

A Avenida Paulo Samuel Kankhomba, que termina na "rotunda", é um rodopio. No ar, o cheiro acre de transpirações incontidas, o odor dos fritos, dos animais. As cores garridas das capulanas, relógios e demais produtos em exposição. Aqui tudo se vende - aspirinas avulso, canetas a meia tinta, pintos, sapatos em segunda mão, jornais da véspera ou mesmo da antevéspera. Meninos como Jó oferecem-se para "guardar" carros, pedem moedas, tentam vender pequenos nadas.

Foi neste corre-corre que, um dia, os quatro pequenos deram pela falta de "Sonki", de 11 anos. Dizem que foi raptado por um branco num carro de vidros fumados. Assustados como andam, desconfiam da própria sombra. Veio "um branco num carro perguntar se a gente queria pasta para ir à escola". E eles correram para longe, não fosse ele um raptor. Como o homem voltou acompanhado de dois amigos, encheram-se de medo e fizeram-se à estrada. Foram para o mosteiro das Servas de Maria, a uns dez quilómetros.

Os quatro meninos moram agora com as irmãs. Estão a aprender a ler e a escrever, como outros 60 órfãos que elas acolhem. "Se uma pessoa me pega e me mata eu volto para matar ela!", promete Jó, de olhos mais abertos do que a boca. "Eles, os brancos, querem a nossa cabeça, o nosso coração, o nosso sexo." E eles, os meninos de rua, querem o sossego de um lugar a que possam chamar lar.

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